
A procuradora geral da República, Raquel Dodge, declarou, na quarta-feira, que não vê risco de anulação das decisões judiciais decorrentes da Operação Lava Jato, com a decisão do STF de enviar os casos de corrupção, associados a caixa 2, para a Justiça Eleitoral.
“Corrupção, lavagem de dinheiro e crime organizado são prioridades no Ministério Público Federal. As verbas públicas são extremamente importantes. Devem ser intocáveis por corruptos. Se desviadas, causam danos imensos. Devem ser devolvidas aos cofres públicos. Os infratores devem ser punidos.
“Eu não vejo esse risco [de anulação da Lava Jato] nesse momento. Mas é preciso avaliar tudo isso com muito cuidado e manter o foco. Não perderemos o foco contra a corrupção e contra a impunidade no País.
“A minha instituição e eu também respeitaremos essa decisão, mas é preciso também reorganizar as forças e instituições com os instrumentos jurídicos que temos para continuar enfrentando o crime organizado, a corrupção e a lavagem de dinheiro. Esta é uma prioridade permanente da nossa instituição”.
A QUESTÃO
É impossível entender a decisão de quinta-feira, da maioria do Supremo Tribunal Federal (STF), sem referir-se à situação política em que foi votada – isto é, à situação política atual.
Nelson Hungria, um dos maiores juristas brasileiros – e ministro do Supremo de 1951 a 1961 – escreveu que o STF “na sua alta função política, deve examinar cada caso em concreto, de acordo com os aspectos que apresente, para melhor salvaguardar o interesse geral, ainda que, para isso, tenha de contornar o rígido texto legal”. (cf. Nelson Hungria, voto no RC 1.024/RJ, Pleno do STF, 07/08/1957, grifos nossos).
Resta saber, além das motivações da maioria do STF, se, no julgamento de quinta-feira, o “interesse geral” foi salvaguardado.
Qual era o caso?
Em 2010, a Odebrecht repassou dinheiro, ilegalmente, através de seu departamento de propinas (“Setor de Operações Estruturadas”), ao então deputado estadual Pedro Paulo Carvalho Teixeira, através do então prefeito do Rio, Eduardo Paes:
“Essas somas seriam da ordem de R$ 3.000.000,00 (três milhões de reais), tendo a transação sido facilitada por Eduardo Paes, ex-prefeito do Município do Rio de Janeiro, por meio de contato com o Diretor [da Odebrecht]Benedicto Júnior. (…) no sistema ‘Drousys’, há referência a diversos pagamentos a ‘Nervosinho’, suposto apelido de Eduardo Paes. Em anexos aos termos de declaração, o colaborador [Benedicto Júnior] apresenta as planilhas de que constariam os pagamentos e e-mails em que reuniões teriam sido agendas e solicitações de pagamentos foram feitas” (cf. STF, min. Fachin, INQUÉRITO 4.435, p. 1).
Em 2012, a Odebrecht passou R$ 15 milhões a Eduardo Paes, como propina, por conta das obras das Olimpíadas de 2016:
“… novas solicitações teriam sido feitas e o grupo empresarial repassou mais de R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais) a Eduardo Paes, ante seu interesse na facilitação de contratos relativos às Olimpíadas de 2016.
“Dessa quantia, R$ 11.000.000,00 (onze milhões de reais) foram repassados no Brasil e outros R$ 5.000.000,00 (cinco milhões de reais) por meio de contas no exterior.
“[O diretor da Odebrecht] apresenta documentos que, em tese, corroboram essas informações prestadas” (cf. idem).
Além disso, em 2014, “Pedro Paulo teria recebido R$ 300.000,00 (trezentos mil reais), de maneira oculta, para a campanha à prefeitura. O pedido foi intermediado por Eduardo Paes e haveria registro no Sistema ‘Drousys’ de pagamentos a ‘Nervosinho’” (idem).
Sem nos ater a outros detalhes jurídicos, que, aqui, têm menos importância, o que se discutiu, no pleno do STF, na quarta e quinta-feira, é se, existindo um delito eleitoral (caixa 2 eleitoral), o crime de corrupção deveria ser julgado pela Justiça comum (isto é, a Justiça Federal) ou também pela Justiça Eleitoral.
O relator do processo, Marco Aurélio de Mello, defendeu que o crime de corrupção, nesses casos, é um “crime conexo” ao crime eleitoral – portanto, também deveria ser julgado pela Justiça Eleitoral.
A procuradora geral da República, Raquel Dodge, em sua intervenção no STF, lembrou que a Constituição é clara, a esse respeito:
“Art. 109. Aos juízes federais compete processar e julgar:
(…)
“IV – os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.
Portanto, os crimes eleitorais deveriam ir para a Justiça Eleitoral e os crimes comuns – inclusive o de corrupção – deveriam ir para a Justiça comum (a Justiça Federal).
Sobre os dispositivos do Código Eleitoral e do Código de Processo Penal citados pelos que queriam enviar os casos de corrupção à Justiça Eleitoral como “conexos” do crime eleitoral, Raquel Dodge apontou que “nenhum desses dispositivos tem a prerrogativa de alterar aquilo que a Constituição Federal estabeleceu como competência absoluta material da Justiça Federal”.
O conceito de “conexão” entre os crimes, disse ela, não pode ser usado para ignorar a Constituição:
“Uma eventual conexão entre crimes comuns de natureza federal e crimes eleitorais não se resolve subtraindo a competência da Justiça Federal. A solução constitucional para os casos de conexão entre crimes federais e eleitorais é a de cindir a respectiva investigação penal.”
E apontou a decorrência:
“… a consequência prática daí decorrente será a de remeter milhares de investigações e ações penais em curso, que tratam de complexos crimes federais praticados em conexão a crimes eleitorais, aos órgãos da Justiça Eleitoral, para processo e julgamento. A Justiça Eleitoral não está vocacionada para processar e julgar crimes comuns federais, alguns dos quais se revestem de extrema complexidade, como os crimes de corrupção, lavagem de dinheiro e organização criminosa”.
Realmente, a Justiça Eleitoral nem aos menos tem juízes próprios – isto é, exclusivos. Sua função é, obviamente, julgar delitos eleitorais – e não atentados ao dinheiro público, corrupção passiva e ativa, peculato, etc.
Como disse o ministro Luiz Fux na quinta-feira, “os crimes eleitorais são transportar eleitores, fazer propaganda na hora do voto”. Por outro lado, “o STF já entendeu que caixa 2 é crime comum”.
O RESULTADO
Apesar de toda essa lógica, a maioria do STF, constituída pelos ministros Marco Aurélio de Mello, Alexandre de Moraes, Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes, Celso de Mello e Dias Toffoli – que desempatou a votação – enviaram os crimes comuns (corrupção) cometidos por Eduardo Paes e Pedro Paulo para a Justiça Eleitoral, e, por extensão, os casos da mesma ordem que aparecerem.
Votaram pelo envio dos crimes federais – isto é, os crimes de corrupção – à Justiça Federal, as ministras Rosa Weber e Cármen Lúcia e os ministros Luiz Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux.
O interessante é que a maioria dos ministros que votaram pelo envio dos casos de corrupção para a Justiça Eleitoral alegaram uma jurisprudência que, como disse um deles, Gilmar Mendes, é de 50 anos atrás, ou mais (“A escolha histórica de atribuir à Justiça Eleitoral o julgamento de crimes conexos a crimes eleitorais reflete um pensamento político-constitucional que remonta a meados do século 20 do País”).
É como se a situação de meio século atrás fosse a mesma que a atual.
No entanto, a maioria no STF não foi formada por ministros que queriam proteger os corruptos. Desse tipo, pode ser que houvesse um ou dois, três, no máximo, que são notórios opositores da Operação Lava Jato. Mas, sozinhos, eles jamais constituiriam maioria no STF. Houve, então, outro fator.
Isto é claro pelo voto do ministro Celso de Mello, decano do STF, que não foi leniente com a corrupção:
“O fato inquestionável e verdadeiroé que a corrupção deforma o sentido republicano da prática política, afeta a integridade dos valores que informam e dão significado à própria ideia de República, frustra a consolidação das Instituições, compromete a execução de políticas públicas em áreas sensíveis como as da saúde, da educação, da segurança pública e do próprio desenvolvimento do País, além de vulnerar o princípio democrático” (cf. Celso de Mello, voto, Quarto Ag. Reg. no Inq. 4.435, 14/03/2019, grifos e itálicos no original).
Celso de Mello concordou, inclusive, com a maior parte da argumentação da Procuradora Geral da República.
Então, por que votou a favor de enviar para a Justiça Eleitoral os casos de corrupção “conexos” com crimes eleitorais?
Ele explica:
“… esta Suprema Corte (…) representa um veto permanente e severo ao abuso de autoridade, à corrupção do poder, à prepotência dos governantes e ao desvio e deformação da ideia de Estado Democrático de Direito
“… os julgamentos do Supremo Tribunal Federal, para que sejam imparciais, isentos e independentes, não podem expor-se a pressões externas, como aquelas resultantes do clamor das multidões e de panfletagens insultuosas e atrevidas que têm sido veiculadas, sob pena de completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais que a ordem jurídica assegura a qualquer pessoa mediante instauração de procedimentos estatais de persecução penal” (grifos no original).
De que o decano estava falando?
De alguma manifestação popular na porta do STF?
Com certeza, não, até porque não houve nada semelhante.
Estava se referindo aos ridículos achaques do procurador Dallagnol, segundo o qual a Operação Lava Jato iria acabar, se os ministros não votassem para manter os casos de corrupção associados a delitos eleitorais na Justiça Federal.
Como se os ministros tivessem que se submeter sempre ao que ele acha… E logo o STF, cujas decisões, em sua maioria, têm sido a favor dos resultados da Operação lava Jato e de sua continuidade.
Porém, mais importante, Celso de Mello estava se referindo à campanha de ameaças e difamação, nos meios ditos virtuais (sobretudo o Whatsapp), contra os ministros do STF.
Essa campanha teve origem certa: foram as milícias bolsonaristas na Internet que a desencadearam, inclusive parlamentares bolsonaristas.
A campanha tinha, portanto, como aquela personagem de Dumas, a reconhecível marca da infâmia.
Com o estímulo ostensivo, na sexta-feira, do deputado Eduardo Bolsonaro – aquele que, há alguns meses, declarou que “para fechar o STF só precisa de um cabo e um soldado”.
Teve de tudo, pelas redes ditas “sociais”, antes e depois da votação: idiotas pedindo o “fim do STF”, xingamentos aos ministros, acusações de que a OAB e o Judiciário “estão aparelhados com essa máfia comunista e o narcotráfico de toda a América Latina”, etc., etc.
É disto que o ministro Celso de Mello falou em seu voto.
Daí sua menção à ameaça de “completa subversão do regime constitucional dos direitos e garantias individuais e de aniquilação de inestimáveis prerrogativas essenciais”.
E, claro, sobrou para o ex-juiz Moro, que, no momento, infelizmente, está assistindo a esse festival de estupidez dos apoiadores do governo de que aceitou, em péssima hora da sua vida, fazer parte:
“… a resposta do poder público ao fenômeno criminoso, resposta essa que não pode manifestar-se de modo cego e instintivo, há de ser uma reação pautada por regras que viabilizem a instauração de procedimentos que neutralizem as paixões exacerbadas dos agentes da persecução penal (…)”.
E, claro, para Bolsonaro:
“O procedimento estatal – seja ele judicial, policial, parlamentar ou administrativo – não pode transformar-se em instrumento de prepotência nem converter-se em meio de transgressão ao regime da lei.
“O que simplesmente se revela intolerável, e não tem sentido (…) é a sugestão – que seria paradoxal, contraditória e inaceitável – de que o respeito pela autoridade da Constituição e das leis possa traduzir fator ou elemento de frustração da eficácia da investigação estatal ou do processo penal.
“… se consolida, em nosso País, de maneira real, o quadro democrático delineado pela mais democrática de todas as Constituições que o Brasil já teve: a Constituição republicana de 1988, não obstante a panfletagem insultuosa e atrevida de determinados setores inconformados”.
Portanto, agora, não é difícil entender por que a posição de enviar casos de corrupção para a Justiça Eleitoral conseguiu fazer maioria, por mais que ela nos pareça – como, aliás, também à procuradora geral – equivocada.
Houve ministros que, diante do acontecido nos últimos dias, se perguntaram o que estava havendo. Na dúvida – ou nem tanto – preferiram enviar os políticos para algum lugar onde era menos provável que houvesse algum linchamento jurídico.
Trata-se, como já dissemos, de um equívoco, pois é claro que a Justiça Federal não é – e não tem sido – isso. E não faltam, em caso de desvios, mecanismos corretivos, tanto na Justiça como no Ministério Público Federal.
Mas nem sempre os motivos de uma decisão equivocada são equivocados.
C.L.
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