O ex-governador Ciro Gomes (PDT) chamou a atenção recentemente, numa entrevista, para o fato de que, em apenas nove dias de transição, a equipe de Jair Bolsonaro conseguiu criar três graves crises internacionais, com potencial de trazer grandes prejuízos políticos e econômicos ao país. Com a China, ao se engraçar com Taiwan, com o Mercosul, ao dizer que não é mais prioridade para o Brasil e com o mundo árabe, ao anunciar a possível mudança da embaixada brasileira de Tel Aviv para Jerusalém. Todas com vistas à bajulação do governo Trump e todas atingindo parceiros comerciais de primeira ordem do Brasil.
Agora, passados mais alguns dias, ele volta à carga e, em mais uma trapalhada, agride Cuba, desrespeita a soberania do país vizinho e pode colher uma crise social gigantesca na saúde pública do país. Ele insinuou que os médicos cubanos são de segunda categoria. “Considero desumano dar aos mais pobres atendimento sem garantia”, disse Bolsonaro, ao referir-se aos mais de 8 mil médicos cubanos que participam do Programa Mais Médicos em território brasileiro. O resultado é que, diante desses ataques, o Ministério da Saúde de Cuba não tinha outra coisa a fazer a não ser suspender sua participação no programa. Milhares de municípios brasileiros ficarão sem atendimento.
Em nota, anunciando o rompimento, o governo cubano se referiu às “referências diretas, depreciativas e ameaçadoras à presença de nossos médicos”. A decisão dos cubanos levou em conta também a intenção do governo brasileiro de “modificar termos e condições do Programa Mais Médicos, com desrespeito à Organização Pan-Americana da Saúde [Opas] e ao convênio assinado por ela com Cuba”. As autoridades cubanas consideraram um desrespeito “pôr em dúvida a preparação de nossos médicos e condicionar sua permanência no programa a revalidação do título e [ter] como única via a contratação individual”.
Como os municípios que aderiram ao programa são pobres e muito distantes, os médicos brasileiros não se dispõem a residirem e nem a atenderem nestes locais. Dos 18.240 médicos que participam do programa, 8.332 são provenientes de Cuba, país acostumado à missões de solidariedade internacional. As declarações e decisões de Bolsonaro contra os médicos cubanos – com exigências que não faziam parte dos contratos – trarão como consequência o colapso no atendimento e o consequente abandono de populações carentes do interior do país. O programa abrange mais de 60 milhões de pessoas, segundo o próprio governo.
Sem se preocupar com isso, o capitão, que se gabou de votar contra todos os direitos trabalhistas quando esteve na Câmara, agora, num arroubo demagógico, acusa Cuba de não respeitá-los. Como se alguém pudesse levá-lo a sério em matéria de respeitar o trabalhador e os seus direitos. E como se Cuba não fosse um país respeitado no mundo inteiro por suas conquistas sociais. Bolsonaro está colocando sua ideologia estreita, sectária e submissa a Trump na frente dos interesses da população brasileira.
O programa Mais Médicos, criado em 2013, no governo Dilma, que deveria ser emergencial, acabou se perpetuando. O incentivo, dado pelo governo petista, para a abertura de mais faculdades de medicina – como se o problema fosse apenas falta de médicos – de nada adiantou, apenas serviu para a proliferação de grupos privados de pouca qualificação. A realidade demonstrou que mais do que criar mais faculdades, ou buscar médicos fora do país, o que é necessário é uma política séria de governo que tenha como objetivo a cobertura de saúde para todo o território nacional. Isso demanda investimentos, demanda uma carreira de Estado e incentivos para os profissionais se estabelecerem e trabalharem nesses locais. Nada disso ocorreu nesses anos todos.
O Mais Médicos não aumentou a presença de médicos brasileiros no interior do país exatamente porque não fez parte de uma política mais ampla neste sentido. Como também não vai adiantar o anúncio de mais e mais editais para cobrir o rombo de médicos criado pela trapalhada de Bolsonaro. Em cinco anos de programa, nenhum edital de contratação de médicos brasileiros conseguiu contratar quantidade suficiente de profissionais para as vagas abertas. O maior edital resultou na contratação de 3 mil brasileiros.
Dos 5.570 municípios do país, 3.228 só têm médicos do programa, e 90% dos atendimentos da população indígena são feitos por profissionais de Cuba, de acordo com o Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems). “A rescisão repentina desses contratos aponta para um cenário desastroso”, opina a entidade. Vai haver, de fato, um colapso. Os grandes demandantes do programa eram os prefeitos, que não conseguiam atrair médicos para regiões distantes dos centros urbanos”, afirma Leonor Pacheco, pesquisadora da Universidade de Brasília (UnB) que participou de projeto para analisar os resultados do Mais Médicos.
SÉRGIO CRUZ
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